quinta-feira, 27 de abril de 2023

Dois Burros João Rodrigues

 DOIS BURROS

 

JOÃO RODRIGUES

 

            Dois burros conversavam num pasto. Um burro estava feliz, e o outro estava triste. O pasto que eles falavam era um pasto muito especial. Era um pasto verde, apetitoso, que ficava lá no planalto central. E lá estavam os burros naquele pasto. De modo que o burro feliz falou para o burro triste:

            - Por que está tão triste assim, burro?

            - E porque eu teria motivo de estar feliz! Uma vez que não sou como você que vive o galanteio da corrupção. Que vive os momentos de alegria e glória. Que carrega consigo as vitórias alcançadas nas urnas da  corrupção. Não burro, eu não tenho motivo para estar feliz. Eu sou apenas um burro de um eleitor. Sou um burro triste que vive desprezado depois do tempo das campanhas. Dos currais que passam em cada fim de pleito... Portanto burro. Não vejo por onde ser  um burro feliz.  Você sim, pode ser  um  burro  feliz. Pois vive rodeado de uma grande quantidade de mulas.  Mulas modelos, mulas repórteres, mulas da televisão colorida, mulas da sociedade dos burros felizes. E eu? Veja as minhas costas como ela fede. Fede a pobreza de uma nação. Fede a dor de um trabalhador. Fede a tristeza da fome. Fede o descaso. Meu dono é um coitado assalariado que pesa cento e vinte quilos de pobreza e ignorância. Eu sou obrigado a carregá-lo para lá e para cá. Onde ele bate nas portas da corrupção sem ser recebido sequer. E por nada ele ter, coloca sobre mim aquela sela cheia de pregos que dói a minha alma. Se for que burro tem alma. Você, no entanto não burro. Tem sela nova, brida de prata. Tem um dono corrupto que rouba de todos. Que busca nos cofres de cada lugar o que quer.  Que compra pra você  brida de prata, sela acolchoada, espora de  prata, que te alimenta de vacina e ração. Que são importadas com o cheque do poder, onde cresce a dívida do povo. Então assim você é um burro feliz. Cercado de mulas e passeia pelos campos da terra, para lá e para cá.  E quanto a mim! Hem! Com esse peso sobre o meu lombo, que fede tanto. Nem sequer uma mula aproxima-se de mim. Não tenho motivos para estar feliz burro. Não tenho motivos...

            De maneira que o burro feliz falou para o burro triste:

            - Por que então você não descarta o seu dono? Existe um grande abismo quando você for para cidade, jogue o seu dono lá. Descarta-o. Faça isso... Meu dono fala assim lá no palácio. Ele ensina a descartar os otários. É o que eu acho que você deve e já deveria ter feito. Descartar os otários.

            - Não sei se isso é o certo.

            E sem responder, o burro feliz saiu sorridente com as suas lindas mulas, naquela noite de lua cheia. Naquele pasto apetitoso, lá no Planalto Central. E na mente do burro triste, repetia a cada instante a voz do burro feliz, numa forma de mensagem do mal. Dos malditos chamados doutores. Descarta-o.  E a lua se foi.  O Burro triste pestanejava, pensando como seria então o amanhã. Como seria o seu destino numa Pátria de burros malditos. Numa Pátria de corruptos que como burros andam nos pastos, nas estribarias, nos currais... De modo que o amanhã logo veio. E o velho nojento. O dono do burro triste, falava com o coitado:

            - Vamos pra cidade...

            E colocando aquela sela cheia de pregos em seu lombo, aquela brida de ferro enferrujada em sua boca, montando sobre ele aquelas palavras horríveis, de campanhas horríveis, de miseráveis da terra, que nunca respeitaram ninguém.

            - Vamos seu maldito, seu desgraçado. Imprestável, você não vale nada.

            Eram aquelas palavras... Daquelas teias das aranhas malditas do tempo. Tecidas por aquelas coisas nojentas. Era o que aquele burro triste ouvia. E lá num canto da estrada onde tinha um abismo, o burro triste ouviu em sua mente a voz do maldito e indesejável burro feliz:

            - Descarta ele cara, é agora, é a sua vez. Chegou a hora do tudo ou nada cara, jogue-o no abismo.

            Contudo o burro triste não o jogou. Porém, ali naquela estrada estava tudo limpo. Não havia ali no chão um pedaço de pau nem uma pedra e nem sequer um buraco onde ele pudesse se desculpar. Não, não tinha nada. No entanto, sabe lá no quê ele tropeçou e acabou que o coitado do velho, o seu dono, caiu no abismo. Por ser tão pesado talvez. O certo é que ele rolava abismo a baixo e gritava por socorro. De maneira que o burro triste. Mesmo com aquela brida de ferro enferrujada em sua boca. Mesmo assim, puxou  o velho pra fora daquele abismo infernal. E assim que o burro triste tirou o velho do abismo, o velho nojento gritou:

            - Milagre, isso é um milagre!

            E assim, o velho abraçava e beijava o burro triste, repetindo por muitas vezes que o seu burro tinha te salvado. E aquele dia ali naquela pequena cidade, mesmo ali perto da corrupção, aquele povão que formava o elenco de miseráveis da terra brasileira, assistia a alegria daquele velho que dizia ter encontrado o milagre, que esteve ele de frente a frente com o milagre. E eles lhes davam atenção, e queriam saber a verdade, queriam saber aos mínimos detalhes como tudo tinha acontecido com o velho nojento e o burro. E aquele dia foi um dia muito especial para aquele burro triste. Aquele dia ele ganhou uma sela nova, uma brida de prata, espora  de prata, um curativo em seu lombo, naquela tamanha pisadura.

Aquele dia é como se fosse um pobre eleitor que tinha ganhado em uma loteria qualquer, que agora parecia ser um burro feliz parecia ser... De modo que o seu dono, o velho idiota, nem sequer montou nele, ia para casa, puxando o seu burro... Ele feliz falava para a floresta, para as coisas que via em sua frente:

            - O meu burro me salvou, graças ao meu burro eu estou vivo. É! Graças a ele que eu estou vivo...  

            Aquele homem pobre levava consigo a alegria da vida, é como se fosse tão especial para ele a vida, não sei por quê. De maneira quê. Vivendo naquele sacrifício, e mesmo assim, ele votava naqueles miseráveis corruptos, aquele homem ainda era feliz por ter continuado a sua vida. Um mistério que ninguém consegue decifrar.   Que alegria será que tinha aquele pobre operário, velho, com cento  e  vinte  quilos  de   pobreza  e ignorância, confiando o seu voto em cada um maldito  que  chegava ao poder, que nem sequer deu a ele uma  condição de um teto,  de um salário, uma assistência médica, aquele era um burro também? Era igual ao seu próprio burro, que alimentava um pasto seco mesmo que estivesse lá no Planalto Central. Ali mendigando em cada porta de cada ministério e ainda puseram nele, apelidos como sem casa, sem teto, descamisado. Malditos, assim eu via aquele burro triste andando atrás daquele velho idiota, enganado a vida toda por aqueles malditos, malditos. Assim foi. E ele chegou à sua velha casa onde restava ali ainda uma velha esposa. Esclerosada, diabética, nem sequer a sua visão funcionava mais. Talvez por falta de alimentação. Com certeza, muitos

males rondavam ali a casa de um eleitor. Por que o escudo pregado lá em cada comício de um daqueles burros felizes, não chegou ali, por que foi pouco o que conseguiram para roubar, não dava para  alimentar o covil das serpentes que chegavam ao poder daqueles currais. Aqueles currais cheios de touros vermelhos com chifres pontiagudos onde uns chifravam os outros, ali à beira da cocheira em busca de lamber uma quantidade maior de sal, e assim a dívida da nação crescia.  Assim um enorme buraco formava do lado daquela cocheira onde os velhos touros. Com aqueles chifres pontiagudos conseguiam escorraçar os outros pequenos touros que chegavam ali. Parecia uma reunião  de satanás, de demônios do inferno, que chegaram ali em busca de destruir o resto daqueles burros tristes que existiam. Portanto, na casa daquele pobre homem só existia o reflexo da desgraça, a fome, a doença, a maldição. No entanto aquele dia era um dia especial para aquele homem, aquele era um dia de milagre, era um dia que poderia ser acompanhado por outro burro, um burro feliz, para poder contar nos palcos  dos sues currais que existia o milagre, assim  como fazem aqueles burros de gravatas de seda que pregam uma maldita fé para um povo miserável, pregam um milagre que não Aconteceu, e nunca irá acontecer.

            Contudo na casa daquele homem, um burro triste o tirou do abismo, aquele era real. De maneira que para festejar, o velho soltou o seu milagroso burro no pasto e entrou feliz para dentro da sua casa. Veja a que ponto chegamos, veja a degradação do povo, onde os irracionais é que são os nossos salvadores. Porque não precisamos mais contar com os racionais, porque estão preocupados com a corrupção, preocupados com a guerra, preocupados com a maldição, preocupados com o pecado, preocupados com a miséria, estão preocupados com a maldita grandeza, preocupados com até o pasto de pequenos currais, preocupados com o sal do cocho, estão  preocupados com isso, e assim, se esqueceram do seu próximo, esqueceram do seu irmão, Esqueceram de cada um. Portanto, ainda contamos mesmo assim, com os burros tristes de algum curral. E quando aquele burro triste chegou ao pasto, a lua já havia saído e o seu clarão prateado fazia brilhar as folhas do capim. De maneira que o burro feliz chegou perto do burro triste e disse:

            - E aí? Cheiroso hem! Olha, deu certo o que te falai. Não te disse. É assim cara, o mundo é assim, a gente tem mesmo que descartar cara, o capim é muito pouco para nós. Agora funcionou, você viu? Já fizeram até curativo em você. De modo que o burro triste falou para aquele maldito e estranho, poderoso feio e nojento burro feliz:

            - Afasta-se de mim seu maldito, afasta-se de mim. Afasta-se de mim, pois não tinha nem um pedaço de madeira e nem um pedaço de pedra.   Não tinha  buraco  no  chão  para  que  eu  pudesse  me  tropeçar. Suma de perto de mim seu maldito.     E assim, aquele burro feliz saiu com as suas mulas. Mula modelos, mulas repórteres, mulas da televisão colorida, mulas da sociedade de burros felizes que vivem a explorar a sociedade dos burros tristes. Burros que não têm nem mesmo onde pastar, onde encontrar algo, encontrar a tal da alegria que faz sorrir. A qual só é encontrada nos pastos onde pastam os burros felizes. Naquela noite, porém, o burro triste teve a oportunidade de dizer o desaforo ao burro feliz, pois, naquela noite, ele era o dono do milagre, ele tinha salvado a vida de um homem, mesmo um coitado. Porém, ele era um homem, um eleitor. E o burro triste se sentiu vitorioso naquele capim verde, mesmo sem nenhuma mula do seu lado. Porém, estava feliz, lá naquele capim verde, desejado por muitos burros, só por ele ficar, lá no Planalto Central.

 FIM

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