OS DOZE CONDENADOS
JOÃO RODRIGUES
Bem distante no sertão baiano lá pelos meados do século vinte um grupo de homens sedentos de justiça começavam a se reunir...
- Este mato sempre foi guardado por uma coisa muito estranha!
- Que coisa você acho que é Abelardo?
- Não sei Boris, não tenho a mínima idéia.
- É, vem vindo alguém...
- Quem será Boris?
- Parece ser Leonardo.
- O que será que ele veio fazer?
- É um dos que compõe a nossa missão.
- Boris, você está ai? E você Abelardo? Tudo Bem? Está tudo bem por aqui?
- Acabamos de chegar.
- Abelardo também vai estar conosco nessa missão? Vai ser bom trabalharmos juntos, olha só quem está chegando...
- Daniel e Marildo.
- Ei Boris!
- Vamos chegando Daniel.
- Boris, meu amigo Boris...
- Como está Marildo?
- Com a bala na agulha.
- Calma pessoal.
- Então você não está com a bala na agulha como o Marildo falou?
- Estou Daniel, todos estamos...
- Pessoal...
- Onde deixou o seu cavalo Gamaliel.
- Escondido na mata como sempre Boris.
- Ainda é o azulão?
- Ele mesmo Daniel.
- Vem vindo uma turma...
- São os irmãos Pereira Marildo.
- Eles têm alguma coisa a ver com a missão Boris?
- Tem sim.
- Boris, viemos dispostos a tudo.
- Falou Zé Pereira.
- Tudo bem Boris?
- Tudo em ordem Chico.
- Ei pessoal?
- Seja bem-vindo Neco.
- E você Quinca?
- Estou aqui para darmos inicio a nossa gloriosa missão.
- Ótimo Quinca, no entanto ainda faltam Tião Cruz e Júlio Rodrigues.
- Não sabia que Júlio Rodrigues tinha alguma coisa a ver com o que aconteceu Boris.
- Tem sô, você se esqueceu que Júlio Rodrigues apesar de distante ainda assim é parente de Abelardo!
- Isso mesmo Daniel, o que Marildo falou é pura verdade.
- Então se somos apenas nós, estamos prontos, pois Tião Cruz e Júlio Rodrigues estão vindo.
E os dois últimos companheiros chegaram...
- Boris, ô Boris!
- Estou aqui Tião.
- Como vai Boris?
- Tudo bem Júlio.
- Já estamos prontos Boris?
- Sim Abelardo, vamos.
Depois de todos reunidos entraram mata adentro até chegaram à porta da gruta da morte.
- Deixaremos os nossos cavalos aqui e adentramos a gruta, pois lá nos reuniremos para discutirmos o que será feito – relatou Boris amarrando o seu cavalo preto por nome de marchador.
E já depois de todos dentro da gruta naquela escuridão, Boris relatou:
- Bem pessoal, gostaria que todos se assentassem, e que a nossa reunião seja a primeira e única.
- Já estou pronto Boris.
- Os demais já se acomodaram?
Algum tempo depois...
- Já estamos prontos para iniciarmos a nossa missão.
- Ótimo, Abelardo?
- Sim Boris.
- Você pode dizer Abelardo o porquê de estar nesta missão, para que todos possam entender o seu motivo, pois não queremos nada escondido entre nós.
- Sim Boris eu direi.
E em instante Abelardo falou:
- Sei que muitos de vocês não sabem quem sou eu, portanto gostaria que prestassem muita atenção.
Assim o silêncio que já era grande naquela gruta escura ficou maior.
- Não posso esconder no meu olhar a dor de carregar a angústia causada por um maldito coronel, eu sou filho único de Inocêncio e Antonia, eu ainda pequeno encontrei com a minha mãe morta e também o meu pai caído logo ali do lado dela, pois a vontade de um maldito coronel, a ganância daquele infernal, a sede daquela peste pelo dinheiro, por terra, por grandeza, que foi tanta que se esqueceu, quero dizer, que nunca respeitou ninguém, muito menos de mim, seria muita pretensão da minha parte. Porque um poderoso coronel iria se lembrar de mim, porque logo eu.
- Calma Abelardo, calma, estamos com você.
- Certo Boris, certo, é que me emocionei.
- Então continue.
- Quando aqueles viajantes sepultaram os corpos de que me trouxe ao mundo, e logo depois de me darem de presente ao um casal de ricos, que deve ter sido uma coisa de Deus, se for que Ele existe mesmo, contudo acho que isso só pode ter sido Dele, pois assim eu fui educado.
- Se educou em que Abelardo?
- Advogado.
- E que quem foi o coronel que mandou acabar com os seus pais?
- Diziam que foi o temido e poderoso coronel Martiniano de Azevedo.
- Termine de contar a sua condenação Abelardo.
- Fui com o doutor Bruce e a senhora Alaíde de Morais, para a capital, fui me educando e da maneira que eu crescia, crescia também o ódio dentro de mim, eu tinha tanto, tanto ódio dos coronéis.
- Qual a capital que se educou Abelardo?
- São Paulo. Doutor Bruce era dono de uma grande indústria por lá?
- Agora não tem mais?
- A indústria hoje é de minha propriedade. Eles morreram num acidente de avião.
- Lamentamos.
- Obrigado, como eu ia dizendo, consegui me formar, hoje sou um advogado, porem vivo amargurado até o presente, não pude dar o meu amor a ninguém, pois a maldita sombra do passado me acompanha com a imagem de um coronel, um único coronel, coronel Martiniano de Azevedo.
- Sendo um advogado poderia entrar na justiça contra o coronel Martiniano de Azevedo.
- Pra quê Quinca, pra lembrar o coronel que fiquei vivo, que sou mais uma sobra das suas façanhas, que mais um doutorzinho que aprendeu nos livros a acusar e defender alguém, enquanto às vezes é derrotado por um grupo de testemunhas e juízes comprados pelos próprios coronéis, não Quinca, não posso. No meu caso é só a vingança, vingança do próprio punho, por isso voltei da capital para acabar com o maldito coronel Martiniano de Azevedo.
- Pode ter certeza que estaremos prontos pro que for preciso.
- Eu espero Boris.
- Estamos com você Abelardo – relataram todos ao mesmo tempo.
- Agora ouviremos Leonardo.
Antes porem de Leonardo falar parecia que não havia ninguém na escura gruta, e no silêncio todos esperavam Leonardo perdido na escuridão.
- Dei um minuto de silencio em memória do senhor Sebastião, agradeço a ele por ter me escondido antes da fúria do maldito coronel Acácio.
- Coronel Acácio, o primo maldito do coronel Martiniano de Azevedo?
- Sim, aquele maldito.
- Compartilharemos a nossa vingança.
- Estamos juntos Leonardo, pode ter certeza.
- Obrigado Boris.
- Desculpe a minha intromissão Leonardo, é que vivo muito angustiado.
- Tenha calma doutor Abelardo, pode continuar Leonardo.
- Certo Boris.
Na escuridão da gruta ninguém podia ver o ódio que aportava em cada um daqueles condenados, os doze condenados.
- Meu pai tinha me deixado na casa da tia Angerina irmã da minha finada mãe, pois uma cascavel já tinha matado a coitada, e que Deus a tenha em um bom lugar, a minha querida mamãe Anita.
- O que aconteceu?
- Sei que dias depois o cavalo chegou arrastando o meu pai.
- Ele já estava morto?
- Sim, o meu tio Ambrósio resolveu fugir do coronel Acácio.
- Para onde?
- Irece, ele tinha uma irmã lá.
- Ficaram esse tempo todo lá?
- Sim Neco, porem sei que aqui é o meu lugar, e vim depois de ter terminado a minha tarefa.
- Que tarefa?
- Não sei bem Quinca.
- É que o meu tio e a minha tia morreram afogados lá na represa, assim eu não tinha mais nada a fazer, nada mais por lá, vim disposto a acabar com o coronel Acásio.
- Por que não o matou ainda?
- Não sei Zé, parece que alguma coisa está no ar.
- Que coisa seria?
- É que parece que Deus queria que nos conhecêssemos, ou que conhecesse cada um a dor do outro.
- Pode ser isso, continue Leonardo.
- Acho que já falei tudo Boris.
- Ouviremos agora Daniel.
- Minha história, que interessante, quanto tempo fiquei aqui dentro de mim, escondido, como se fosse eu o culpado, o culpado de não sei o que, pobre de mim, depois de muito tempo o que pude entender é que era culpado, e que fui culpado, e que a culpa era do coronel, ou talvez um coronel ou todos os coronéis que ocupam todos os lugares da terra.
- O tempo passa Daniel, o tempo passa.
- Não sei o que está querendo dizer Marildo, só sei que os coronéis são malditos.
- Então Daniel, vai ou não vai cantar a sua história, vai o não vai sair do casulo do ódio?
- Sim Boris, tudo tem seu devido tempo, hoje dentro desta caverna escura a coisa que resta dentro de mim deverá sair, ainda bem que estamos dentro de uma caverna escura, assim não será possível ela nos ver.
- Meu Deus, proteja-nos dessa coisa horrível, ajoelham-se pessoal, andem. Continue Daniel, vê se já pode soltar o monstro que está dentro de ti.
- Eu vou contar, eu sempre fui ruim de raciocínio, pois na tragédia eu devo ter sido muito afetado.
- E depois Daniel?
- Era uma noite escura como esta escura igual esta caverna, acordei com as chamas que consumiam a casa, via ali perto de mim, as minhas irmãzinhas abraçadas com a minha mãe, já pareciam pedaços de carvão, já tinham mutilado o meu pai, sabe Boris, vi ali os pedaços dele espalhados pelo terreiro.
- E quem fez isso?
- Dizem que foi o maldito coronal João Duque Neco, mas não sei, é o que dizem.
- Não seria o coronel Lúcio de Alcântara?
- Não Leonardo só sei que aquilo foi coisa de um maldito coronel.
- E depois Daniel?
- Abri um grande buraco no terreiro da casa e coloquei lá dentro os restos mortais dos meus entes queridos. Sabe Boris, pois ali parece que fiquei enterrado, fique também ali, apesar de ter apenas nove anos eu ainda consegui fugir pela estrada levando comigo lá bem dentro do meu pequeno coração a vontade de um dia me vingar, vingar a morte do seu Joaquim, dona Jacinta, e aqueles dois anjinhos, Carmelita e Helen.
- Vimos que só nós podemos entender o drama de Daniel.
- Ouviremos agora Marildo.
- Já estava mesmo ansioso Boris, agora posso depois de tanto tempo colocar para fora esta coisa horrível de dentro do meu coração, sei que em toda minha vida não encontrei a felicidade, nem mesmo o carinho de uma família. Sou como um pequeno arbusto podado bem antes de florir e que nada sobrou de mim.
- Pode falar Marildo, estamos te escutando.
- Eu vou tentar Júlio, eu vou tentar.
De modo que Marildo relatou:
- Era num domingo ainda cedo, o sol começava aparecer, nós já subíamos a serra grande, eu cantava uma canção com o meu irmão mais novo, não sei se foi ela o nosso azar, mas pelo menos cantávamos, ela foi a nossa última canção, pois quando acabamos de cantá-la eu ouvi um tiro, nem quis olhar para trás, o meu pai já descia na ribanceira, o meu irmão nunca gostou de lhe chamar de pai e sim pelo seu nome, seu João, assim ele gritou:
- Seu João.
- Foi à última vez que ouvi a sua voz, depois do tiro o seu cavalo o arrastou com o pé enganchado no estribo montanha a baixo, eu deitei no pescoço do meu cavalo e deixei que ele disparasse rumo ao pé da serra.
- E ainda atiraram?
- Muitos tiros Boris, nem sei por que nenhum deles me atingiu, deve ter sido pela vontade de viver, ou só Deus sabe o que foi. Só sei que uma coisa estranha parece ter apoderado do meu cavalo como se me levasse para longe dali, e já muito longe foi que consegui controlá-lo e assim voltei na intenção de socorrer o meu pai e o meu irmão. E quando cheguei lá no local só encontrei um grande silencio na montanha, parecia que nada tinha acontecido. De modo que segui a batida dos cavalos na ribanceira onde entrei, e ali encontrei o meu pai e o seu cavalo estraçalhados nos bicos das pedras, juntei os pedaços do meu pai e os coloquei num saco, depois coloquei sobre a sela do meu cavalo e continuei seguida a batida do cavalo do meu irmão, que logo adiante encontrei o seu corpo espetado nas gramais, naquela hora eu já não sentia mais dor, acho que aquilo não era dor, dava a impressão que eu já fosse um imortal, tudo que eu mais queria era levar o meu pai e o meu irmão para casa, e com uma enorme vergonha, como eu ia enfrentar a minha mãe, como eu ia dizer a ela o que tinha acontecido, eu estava arrasado...
O silêncio invadiu a caverna escura...
- Meu Deus, quanta violência.
- Pois é, sei que fui andando com aquela expressão inominável em meu rosto, eu levava comigo os restos do meu próprio pai e do meu único irmão, apesar deles estar em pedaços eu ainda falava com eles.
- Ficou louco cara?
- Não, eu não estava louco, e sim tentando diminuir ou pouca a minha, dor, mas era inútil, pois cada gota de sangue deles que cai no chão, era competida com uma gota das minhas intermináveis lágrimas.
- E aí?
- Quando gente está navegando no oceano do azar, é o fim do mundo, nada tem conserto, nada...
- O que foi Marildo?
- Foi quando fui descobrindo a curva da estrada para ver a casa, ali onde morávamos, e me perdi no ódio quando vi apenas a fumaça que acabava de consumi-la, ela saia do resto que sobrou.
- E quem fez isso?
- Coronel Zequinha, Neco, deixou o corpo da minha mãe ali no chão, todo violentado, decepado de machado, era uma coisa temerosa, vi ali do lado também aquele corpinho inocente da minha irmãzinha, coitada, que mal ela tinha feito para merecer aquilo, eu já não importava se tinha alguém no mundo, ou se tinha mundo, a minha cabeça rodava procurando uma razão para aquilo, eu estava triste, fui até o curral e chorando cavei um grande buraco naquele lugar onde eu e meu irmão tirava o leite das vaquinhas, ali eu coloquei os restos mortais deles, e escrevi em seguida com um canivete os nomes deles naquele tronco enorme da árvore que tinha ali perto, tranco que amarrávamos os touros bravos. Ali ficou escrito o nome do meu pai João, a minha mãe Madalena, o meu irmão Lindolfo e finalmente Renilda a minha irmãzinha inocente. Fui andando até o rio Cochá, onde fiquei vivendo na casa do velho índio Guaraci até que chegou o aviso de Boris.
- Então fui você Boris, que nos mandou o recado?
- Sim, para todos vocês, e por falar nisso Gamaliel, acho que é sua vez.
- Doutor Abelardo, Leonardo, Marildo e Daniel já contaram os seus relatos e deu para que eu percebesse que o meu é um pouco diferente, pois posso afirmar que até agora sou eu o que tive a infelicidade de me encontrar frente a frente com o próprio diabo.
- Não estou entendendo Gamaliel, poderia se explicar melhor?
- Meu pai fugiu com uma filha de um coronel.
- Então você é neto de um maldito coronel?
- Isso Zé Pereira, eu sou um neto de um infernal, sendo assim sou um infeliz que nasci no berço do próprio diabo, sou filho de um homem traído pelo diabo.
- Como traído?
- Sim, Boris, sim, se ele tivesse conhecido uma filha de um homem comum tudo seria diferente, quem sabe estaríamos em algum lugar respirando a felicidade, não vivendo aspirando ao ódio, somente o ar do ódio.
- Não Gamaliel, não pense assim, em nenhum lugar do mundo existe a felicidade, não, este ódio está espalhado pelo mundo inteiro, ele foi cultivado pelos coronéis, isso nunca vai acabar.
- Não concordo doutor Abelardo, todos nós temos a oportunidade de sermos felizes, no entanto só os coronéis é que são lá nos seus palácios, lá sim, eles estão vivendo os seus galanteios.
- Não acho que isso é felicidade Gamaliel, pois você mesmo que é neto de um infeliz vive infeliz, onde estaria a felicidade de sua mãe, hem, ela se esqueceu lá no passado, a deixou pendurada num canto do palácio.
- Não sei Neco, deve ter esquecido quando fugiu, fugiu com o meu pai. Rosinha era o nome da filha do infernal que por muito tempo perseguiu os dois pela montanha.
- Com isso você se tornou um pesadelo?
- Pode ter certeza Quinca, eu sou um pesadelo, desde aquele dia que Rosinha me carregava em seu ventre como uma coisa indesejada por aquele monstro, o poderoso coronel Artur, pois em cada olhar dele estava a sentença editada que a minha pobre mãe tinha que morrer, morrer de ódio, até sinto que fui gerado pelas lágrimas do ódio.
- E o que aconteceu afinal?
- Ainda não chegou ao final Júlio, o sangue do ódio corre em minhas veias.
- E quanto ao seu pai?
- Dizem que o mataram e o estriparam, esquartejaram e finalmente deixou os seus restos mortais para os abutres...
- Você pretende nos contar o resto da história?
- Sim, recordo que fui criado na casa daquele bêbado que mais parecia beber para se esquecer de alguma coisa inerente ao seu passado, não sei o que.
- Bêbado quem era ele?
- Militão, um empregado do meu avô, eu achava que não devia acreditar, minha mãe tinha fugido com o meu pai, o pobre jovem Antenor que logo foi esquartejado e muitos anos depois o pistoleiro Militão vivia escondido na serra do Cochá para proteger a minha mãe e a sua própria vida, pois não obedeceu a ordem do meu avô para matar a minha mãe quando eu estava ainda em seu ventre, foi até certo dia que tudo acabou.
- Mataram o Militão?
- Sim Júlio, não só o velho Militão, mas também a Rosinha, a minha mãe, a filha do coronel Artur, eu estava em Juvenilia e quando cheguei a casa à noite os dois estavam pendurados numa corda na varanda da casa. Li um bilhete que me deixaram, ainda guardo ele comigo, não preciso ler, pois já decorei as malditas palavras, escutem, tudo pode acontecer, tudo pode ser, menos alguma coisa que desonra o coronel, o coronel Artur, esta que um dia foi a minha filha, e que desrespeito os meus ensinamentos, que passou por cima das minhas ordens, que fez pouco de um coronel, não obedecendo a mim, agora vê se respeita esta corda amarrada no seu pescoço, que fez separar a sua vida do seu corpo pecador.
- Só isso Gamaliel?
- Ainda acha pouco Zé, uma maldita corda no pescoço, ainda acha pouco? Sim, foi só. De modo que depois eu sepultei os dois lá no terreiro e vim para Carinhanha onde comprei uma casinha na beira do rio São Francisco, e amiguei com Odete, vivo para ela, andando pra lá e pra cá e rastejando em minha mente uma razão, por que o coronel não me eliminou, só por ser neto dele, pode ser, mas sinto alguma coisa no ar.
- E tem mais alguma coisa a dizer Gamaliel?
- Não Julio, não tenho mais.
- Zé Pereira, estamos prontos para escutarmos o seu relato.
- Como acho que já é do conhecimento de todos a maldita história do senhor João Pereira, eu estou aqui por causa dele, se não fosse ele e sua história nem eu estaria aqui e nem meus irmãos.
- Você disse que todos sabem Zé, eu não tenho conciência de tal conto.
- Naturalmente doutor Abelardo, como o senhor mesmo disse que foi criado na capital e assim que chegou a Coribe não teve ciência do que aconteceu.
- Mas agora podemos saber a verdade.
- Isso mesmo Boris, nas curtas e enterradas nas areias as pequenas ruas de Carinhanha foi quando eu ainda criança, tive a oportunidade de poder ver a carroça do velho João Pereira que carregava de um lado para outro as coisas que o mandava até que um dia vi os meus olhos se despedirem da cidade, ficando apenas as lembranças das águas do Rio São Francisco gravadas em minha mente, pois fui para Juazeiro, trabalhar na casa do coronel José Sanico.
- Então foi ser pistoleiro do coronel?
- Nem mesmo sabia pegar em uma arma. Só mesmo mais tarde é que o coronel me ensinou para poder lutar contra o coronel Sebastião Pires.
- Aí foi matar gente para ele?
- Sim, fui matar gente.
- Foi fácil?
- Sim, matar, era só apertar o gatilho e pronto, ai eu via os cabras caírem no chão, uns tinham formas estranhas de morrer, outros gritavam, outros perdiam perdão, outros ficam em silêncio, outro começavam a chorar até mesmo antes de receber o tiro parecia que já estavam esperando a morte, era uma coisa horrível.
- E o que você sentia?
- Nada doutor, eu não sentia nada, sei que não era certo o que eu estava fazendo, no entanto eu não sentia nada, não sentia medo, de modo que me via na terra do certo ou do errado, na terra do que não sabia o que, se era certo ou se era errado matar ou morrer, só sei que eu matava, pois sei que se eu não matasse, eu seria morto, então eu matei, matei o quanto eu pude matar. Eu sentia que qualquer falha minha a morte me levava, de modo que se eu não fosse bom no gatilho eu não estaria aqui para contar a história.
- E depois de tanta matança o que aconteceu?
- Vencemos o coronel Sebastião Pires.
- Mataram ele?
- Sim, eu e o coronel José Sanico comandamos o último ataque lá na fazenda do coronel Sebastião Pires, o poderoso filho do coronel Eduardo Pires, o que tinha matado o coronel Luiz Sanico, pai do meu patrão.
- Como foi que mataram o coronel Sebastião Pires?
- Foi muito fácil e rápido, entramos com as tochas acesas na fazenda do coronel Sebastião Pires, naquela madrugada o desgraçado deveria estar dormindo e sonhando como iria atacar a fazenda Capãozinho de propriedade do meu patrão, de modo que jogávamos fogo e atirávamos em tudo que víamos a nossa frente, e num piscar de olhos vi o meu patrão lutando com o coronel Sebastião Pires.
- Lutavam na mão?
- Sim, era um costume do coronel José Sanico em matar os seus inimigos com um pequeno punhal de prata com o nome de fio da morte.
- Ele matou o coronel com o punhal fio da morte?
- Isso Boris, dizia que ninguém se via livre daquele magnífico punhal, para o coronel José Sanico significava que era uma energia que vinha direto da mãe morte que levava as almas das pessoas para ela.
- E depois que ele matou o coronel Sebastião Pires o que aconteceu?
- Me ordenou a ficar tomando conta da nova fazenda, foi uma das mais difíceis tarefas que recebi em minha vida. Pois depois que o dia amanheceu eu pude ver os estragos que os cabras tinham feito naquele lugar, para mim, se é que existe o inferno ele era ali, não sobrou ninguém para me ajudar, parecia que tinham feito tudo àquilo de propósito, mas tudo bem feito, eu era o que ele escolheu para a missão, de modo que não fraquejei, e logo construí uma pequena caba e a vida continuou.
- Ficou sozinho cuidando da fazenda?
- Foi Boris, até parecia que era alguma coisa preparada para mim, como todos sabemos que não devemos confiar em um coronel, eu estava ali, porém com um olho na frente e o outro atrás, sentia que a qualquer instante eu seria atacado, o certo é que já passava de três meses e o maldito coronal nem se quer deu noticias, e numa noite de lua cheia eu estava deitado no terreiro foi que senti a areia tremendo foi que percebi que alguém vinha em minha direção, fiz logo um espantalho em minha semelhança e me escondi numa trincheira com a arma em punho, foi logo chegando cavalos e uma coisa estranha fez surgir uma grande nuvem dos céus, de modo que mi vi cercado na escuridão, porem em instantes depois eles invadiram a casa com enormes tochas de fogo, não sei quem eram eles, contudo dava para notar que não era gente do coronel José Sanico, comecei a atirar e depois de algum tempo eu persegui o ultimo que fugia, mas mesmo antes de ele morrer me confessou que tinha sido o coronel José Sanico que havia mandado, sei que me senti triste, pois eu confiava naquele bode velho, eu confiava naquele verme, eu o considerava como se fosse o meu pai, mas mesmo assim ele mandou me eliminar, de maneira que fugi para cá e quando cheguei a Carinhanha me encontrei com Boris que me convidou para esta missão.
- É sua vez Chico Pereira.
- Está bem, hoje eu posso falar, posso falar, há, há, há, há...
- Ficou louco Chico?
- Não estou louco, só estou feliz, pois depois de tanto tempo posso soltar de dentro de mim esta coisa que me atormenta.
- O que tanto te atormenta Chico?
- Quando o velho João Pereira resolveu mandar os seus filhos pro mundo não foi diferente comigo, eu fui ao sentido rio acima até a cidade de Januária, fui servir a fazenda do coronel Altino de Figueiredo, eu ainda era muito novo, a minha primeira batalha foi invadir a fazenda Capim Verde do coronel Osis das Neves.
- Uma luta sangrenta?
- Sim, não tive outra opção. Sei que quando eu atirava naqueles cabras eu me sentia na bruta escolha de matar ou morrer, sei que acabei imaginando que tudo aquilo não passava de um bando de coitados, e assim me sentia aliviado, era o que eu tinha que fazer, porém quando as minas balas acabaram eu fui até o coronel Altino de Figueiredo pedir que me desse mais balas, porem ao invés de me suprir de balas ele acabou atirando em mim, ai foi que fingi que cai morto, porem eles desistiram e se foram sem saber que o tiro que o coronel Altino de Figueiredo me deu tinha passado de raspão, só sei que logo que eles partiram eu aproveitei para fugir, porém fui surpreendido por um homem do coronel Osis das Neves, que logo o dominei, e acabei levando-o até o coronel Osis das Neves, e pedi para que ele me deixasse ficar na fazenda.
- E ele aceitou?
- Sim, não sei por que, mas disse que eu podia ficar. De modo que ai passei a ser empregado do meu próprio inimigo, sei que a qualquer hora ele me mataria, porem senti que algo estranho estava acontecendo, pois passei a ser um dos seus homens de confiança. Lembro-me que atacamos a fazenda do seu Jacinto Pitomba, coitado, parecia que era sozinho, por que não tinha ninguém por ele, um homem só era o bastante para eliminá-lo, logo que o eliminamos o coronel mandou um dos seus homens ficar cuidando das terras, era sempre assim que ele fazia, no entanto nesse dia eu pedi uma informação ao coronel Osis das Neves, se ele ia atacar a fazenda co coronel Altino de Figueiredo, e quando seria, ele ficou em silêncio, eu também fiquei, no entanto nasceu em mim uma dúvida, será que ele tinha me escutado? De maneira que eu voltei a indagar e para minha surpresa ele continuou no mesmo silêncio, assim a minha carga de dúvida aumentou, será que a minha sina era essa? De maneira que naquela mesma noite eu fugi e vim para Carinhanha que aqui me encontrei com Boris.
- Vamos te escutar Neco Pereira.
- Temos muitas coisas boas na vida, sabe gente, eu como filho de um carroceiro não posso negar que não foi fácil ficar longe dessas coisas, sei que tudo que eu fazia era assistir o meu pai distribuir os seus filhos para quem bem entendesse o que me parecia era que ele não sabia, ou que não te interessava saber, o mais importante para ele era sua carroça, seus bois, pois quando eles envelheciam as sua pequenas economias eram empregadas logo em seguida em novos bois, e o caminho continuava sujo, na pobreza, eu achava aquilo estranho, contudo eu percebia que mesmo naquela maldita pobreza ele ainda agradava os malditos coronéis, assim me fazia pensar se a minha vida seria como a dele, ou seria ele parte de um jogo secreto, foram muitos anos que pensei, até que certo dia eu tomei uma decisão.
- Que decisão?
- Era festa do divino em Carinhanha, tinha gente de toda parta do mundo ali, de modo que conheci Leocádia, a filha de um mascate.
- E daí?
- A nossa vida começou a se misturar, foi muito especial, não sei o que ela viu em mim, só sei que nos apaixonamos, quero dizer, que ela se apaixonou se apaixonou por um trapo.
- E você se julgava um trapo?
- Claro que não, mas para ela eu não passava de um trapo, pois foi logo o pai dela resolveu descobrir quem era eu, quem era o príncipe encantado da sua filha, sei que ia indo tudo bem, até que ele resolveu a conhecer o meu pai.
- E você o apresentou?
- Não tive escolha.
- E o que aconteceu?
- Ficaram por algum tempo conversando, lá dentro daquela velha casa onde nasci, e assim que o homem saiu o meu pai me chamou, e me ordenou para me afastar da garota.
- Disse o motivo?
- Não, só disse que eu tinha que me afastar, para mim tudo bem, o que eu achava difícil seria para ela, de modo que fiquei em casa, mas lá dentro de mim era grande a vontade de ir até ela, e lhe contar o que tinha acontecido.
- E você foi?
- Fui onde ela estava hospedada num pequeno hotel, e quando ali cheguei a encontrei assentado num grande banco ali na calçada, de modo que humildemente eu falei olá, e em seguida me assentei do seu lado.
- Ela permitiu?
- Ela me disse para tomar cuidado comigo, nem sei por que falou aquilo, sei que estávamos falando e logo o seu pai veio dizendo para que eu entrasse, pois ele queria ter uma conversa comigo.
- Que conversa?
- Um convite para que eu fosse com eles assim que terminasse a festa.
- Contra a vontade do meu pai e da minha mãe, foi a primeira vez que vi o meu pai se interessando por mim, mas o amor pela jovem falou mais forte, sei que era um amor estranho, não dava para entender, eu não merecia aquela garota, ela era muito bonita, era inteligente, possuidora de qualidades bem acima de um pobre filho de um maldito carroceiro, sei que não sei o que eles tinham ido fazer em Carinhanha, porém depois de uns dias de viagem foi que comecei a entender.
- Podemos saber?
- Claro Boris, íamos com destino a Ouro Velho, uma pequena cidade no sertão baiano, e quando chegamos foi que fui ver o quanto era rico aquele senhor.
- Era um coronel?
- Não doutor, ele era dono de garimpos, muitos garimpos de ouro.
- Então você ficou cuidando do ouro?
- Sim Daniel, fiquei, contudo logo aquele rico senhor me conduziu ao altar com sua rica filha, sei que logo me tornei genro do senhor Valdivino de Alcântara o dono de Ouro Velho parecia um sonho, eu na verdade não consegui entender o que estava acontecendo, para mim nada daquilo era verdade, eu estava assustado, muito assustado.
- E o sonho acabou?
- Tudo aconteceu quando um dia à tarde não tinha muito tempo do casamento, sei que eu estava conversando com a minha esposa e sua mãe, a dona Marta num pequeno alpendre da casa foi quando um homem chegou e me chamou em particular.
- Tragédia?
- Tinha atacado um dos garimpos e raptaram o velho.
- O seu sogro?
- Ele mesmo, e os bandidos pediram muito ouro e dinheiro para entregá-lo vivo.
- E o que você fez?
- Fazer o que, o que poderia fazer um filho de um carroceiro, sei que a minha sogra me deu uma ordem.
- Que eu procurasse a libertar o velho sem a interferência da policia, que pagasse o que eles exigissem, pois estava nas minhas, pois naquela hora percebi que todo aquele que tinha o meu velho sogro, o fizera viver num mundo de solidão, por isso é que ele tinha ido para minha cidade, percebi que naquela hora ele só podia contar com nós três, eu, minha mulher e a mãe dela.
- E o que você fez?
- O que eu deveria fazer, juntei uns cabras que eu conhecia ali na região e fomos em busca do meu sogro, parecia que era o meu dever, sei que um dos cabras me sugeriu ir até a fazendo do coronel Gumercino Rodrigues, dentro do seu próprio garimpo o Ouro Brilhante. Assim preparamos uma mochilas como se fosse ouro e dinheiro, sei que logo chegamos até meu sogro, só que foi quando me vi cercado por aqueles cabras que arrumei, pois um deles era espião do próprio coronel Gumercino Rodrigues.
- Foram presos?
- Sim Boris, fomos espancados, torturados, e por fim me levaram até meu sogro, que vergonha eu sentia, eu até pensava que o meu casamento foi um laço do destino para que eu testemunhasse a morte daquele coitado, eu estava arrasado, sei que era só esperar, pois logo o coronel Gumercino Rodrigues foi a cidade, sabe lá o que foi fazer com a minha sogra e a minha esposa, não sei o que eu deveria fazer, parece que era só, só esperar a morte, contudo em alguns instantes depois eu senti que o meu corpo foi invadido por algo muito estranho, de maneira que me tornei um mostro, nem mesmo vi como me libertei, matei todos os capangas do coronel Gumercino Rodrigues que estavam ali, matei todos eles a pauladas, libertei o meu sogro e fomos às pressas para a cidade a fim de protegermos as nossas mulheres, mas logo ali quando saiamos do garimpo fomos cercados pelo coronel Gumercino Rodrigues, que já esta com as nossas mulheres, de modo que o meu sogro assinou uns documentos para ele, que logo ele soltou a minha sogra, e quando a coitada seguia em direção ao meu sogro quando o tiroteio começo naquela encruzilhada maldita, encruzilhada do diabo, ele estava ali, o próprio diabo estava presente, pois muitos depois os cavalos se foram deixando apenas a morte que levou minha sogra, ficando o meu sogro muito ferido e eu com o braço quebrado, sorte que a minha mulher estava livre.
- O que você fez.
- Fomos para cidade, o corpo da velha, o meu sogro, minha mulher e eu, lá fizemos o funeral da minha sogra e lá pelo sétimo dia enterramos também o meu sogro, de modo que só mesmo minha esposa e eu que ficamos, de sorte que alguns anos mais tarde nasceu o meu filho, e a minha mulher já esperava outro quando numa tarde eu dirigia o meu carro, enquanto meu filho brincava com ela, e ela o chamava pelo seu nome com aquela alegria de falar Julião de Alcântara Pereira, foi quando o carro foi para no fundo de um abismo que existia á beira da estrada como se estivesse ali á nossa espera.
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