O MENINO DE RUA
JOÃO RODRIGUES
Na esquina de rua doze com a avenida vinte e três, alguém chorava...
- Por que está chorando? - indagou um menino de rua.
- Eu.
- Eu quem, uma vez que não estou vendo ninguém!
- Eu, menino, eu.
- Você, mas você é um cãozinho, e por que chora?
- Porque ninguém me quer!
- Ninguém, quem é ninguém?
- Ninguém? Ninguém é ninguém.
- Espera aí, eu não estou lhe entendendo, você está chorando por quem, e nem sabe quem é ninguém.
- Sim menino, você, por exemplo, me quer?
- Eu, você bem sabe que sou um menino de rua, pra que eu vou querer você?
- Pra te fazer companhia, enquanto anda pela rua.
- Companhia, pra que companhia pra quem não tem aonde ir, eu não tenho ninguém, eu não tenho aonde ir, não tenho medo, eu sou o próprio medo do medo de mim mesmo.
- Nossa como você é estranho menino de rua, como você é desumano, você não tem amor.
- Amor, o que você quer dizer com isso?
- Amor no mundo dos cachorros existe, o amor no mundo dos cachorros é quando encontramos um dono, somos muito, muito fiéis a ele.
- Mas onde vive a cadela sua mãe, me desculpe de chamar a sua mãe de cadela, é que o nome cadela é bem melhor do que cachorra.
- A cadela da minha mãe fugiu com um cachorro que não era o meu pai, e não servia ao dono dela, me deixou ainda pequenino, por isso eu choro.
- Mas lhe deu um nome?
- Não ela, mas a filha do dono dela que disse que eu ia me chamar Japi.
- Bonito nome Japi, vou te chamar de Pi.
- Ta bom, pode chamar, mas eu quero que você seja o meu dono, vou ser muito fiel a você.
- E pra que eu te quero?
- Ha! Esqueceu-se que somos sós, não temos ninguém por nós?
- Mas eu sou um menino, é diferente de você que é um cachorro.
- Não sei que diferença, não estamos ambos atirados na sarjeta! Quem sabe você é filho de um cachorro, ou de uma cadela e não sabe.
- Não, isto eu tenho certeza de que não sou eu sou um menino, sou diferente de você, não dá pra perceber?
- Muito mal, sei que estamos no mesmo caminho, somos a mesma coisa, eu vivo na rua e você vive na rua, eu como a comida que jogam fora, você também come.
- Mas eu converso, sei sorrir, sei cantar, e você não sabe.
- Não sei como você, mas sei latir, sei grunhir, sei...
- Bem, você me convenceu, agora vou ser o seu dono.
- O Patrão pode ter certeza de que vou cuidar de você quando estiver atirado na sarjeta, vou lutar contra os bichos...
- Quais os bichos você está falando?
- O homem, o rato, os próprios cachorros da polícia, os cavalos, os bois.
Enquanto o menino de rua falava com o seu povo amigo, seguiam a avenida em direção a Praça Rio Branca.
- Pra onde estamos indo, qual mesmo o seu nome patrão?
- Ah! Pode ser mesmo este nome, nós homens muitas vezes temos nomes, mas muitas vezes nos chamam por outro nome, como: Zé, Cara, Moleque...
- Está bem Patrão, pra onde estamos indo?
- Para Praça Rio Branco.
- Praça Barão do Rio Branco, que você esta falando?
- Sim, é ela mesma.
- Não gosto de ir lá.
- Por quê?
- Lá é muito perigoso, tem muitos cachorros, foi lá que minha mãe me abandonou, e se foi com aquele cachorro depravado.
- Quando Japi falou, o menino de rua ficou triste.
- Ué Patrão, porque ficou triste?
- Não gosto de me lembrar, não posso nem me lembrar...
- Por que Patrão temos que sermos fortes para levarmos a vida, não acha?
- Sim, mas quando você falou Japi, que foi nessa praça que o cachorro conquistou a sua mãe, me magoou.
- Desculpe Patrão, não está mais aqui quem falou.
Patrão sentou-se no meio fio da calçada, pôs Japi no colo, e o abraçou chorando.
- Calma Patrão, antes era eu que chorava, agora você! Pára com isso.
Patrão deixou que as suas lágrimas caíssem na pele de Japi, e falou:
- Foi nessa maldita praça que vi a minha mãe pela ultima vez, sei que fazia pouco tempo que ela tinha me desmamado, fiquei com o gosto do leite que saia da sua teta...
- Calma Patrão, conte amigo, desabafe, eu sou o seu fiel amigo, seu cão.
- Pois é Japi, sei que em meu lugar, vi um grande homem que colocou a minha mãe dentro de um carro...
- E aí, o que aconteceu?
- Ele mamava nela, sei que não por causa do leite, mas era outra coisa queria.
- E o que aconteceu?
- Fiquei debaixo da árvore, e vi que eles dois faziam coisas.
- Coisas Patrão, que coisas?
- Ele tirou aquelas roupas sujas que ela cobria o corpo, jogou-as no chão e se foi com ele.
- No carro?
- Sim, me levantei e corri até o sinal de trânsito, mas eles já tinham ido.
- E nunca mais a viu?
- Nunca, fiquei vagando pela cidade, olhando dentro dos carros que pareciam com aquele que ela se foi, mas nunca mais a vi.
- É Patrão, a história de sua mãe foi quase igual a história da minha pobre cadela sem vergonha que se foi com aquele cachorro pintado.
De modo que o menino e o cachorro chagaram à praça, e lá num conto da rua nove, tinha um grande tambor cheio de sacos de lixo.
- Patrão, fica sentado aí que vou ver se tem algum resto de comida pra gente.
Patrão ficou de cá olhando o seu amigo e fiel companheiro fuçando naquele tambor que era iluminado por aquelas grandes luzes de mercúrio que embelezava a noite solitária da praça.
- Quantas luzes, quanta beleza, e não se vê sequer uma viva alma, quantas luzes que poderia ser alimento para poder matar a minha fome.
- Patrão, ei Patrão, venha cá.
O Patrão foi atender ao chamado do Japi e ao chagar junto ao tambor disse:
- O que foi Japi?
- Me ajude tirar este saco grande, parece que tem muita comida aqui, dá até pra gente guardar pra depois.
Patrão foi ajudar Japi e quando tirara o saco, os seus olhares se maravilharam ao apreciar a grande quantidade de comida que tinha...
- Não lhe disse Patrão, que aqui sempre tem muito resto de comida...
- Que bom Japi, agora dá até pra gente esquecer um pouco a tristeza.
- É mesmo...
- O que foi Japi, você ficou triste.
- Será que as nossas mães estão comendo agora.
Não sabemos Japi, mas Deus ajuda que estejam.
- Deus, o que isso Patrão?
- Deus é o nosso pai eterno que a minha mãe falou pra mim.
- Falou o quê?
- Sim, que Deus criou mundo e todas as coisas que nele há.
- Então eu também sou criatura de Deus, Patrão?
- Sim, claro, você é uma criatura, e eu sou um filho de Deus.
- Mas você não é filho da sua mãe?
- Sim, ela também é filha de Deus.
- Não estou entendendo Patrão, mas vamos deixar isso pra lá.
- Ai, ah!
- O que foi Japi, esse ai há?
- Comi muito Patrão, estou satisfeito.
- Eu também, graças a Deus.
- Patrão, vamos procurar meio de nos acomodar debaixo do viaduto?
- Vamos lá à frente, lá na Avenida do Contorno, lá eu sei onde tem uma casa velha bem melhor pra gente se esconder, a polícia não vai lá.
- Então vamos, e eu vou aproveitar e levar o resto dessa comida.
- Não Japi, deixe isso aí.
- Não Patrão, você está doido cara, a sua barriga não dói só uma vez.
- Não Japi, amanhã voltaremos a essas horas, deve ter mais aí.
- Está bem, afinal de contas você é o meu dono, estou sobre o seu comando.
- Isso, vamos.
O menino e o cachorro saíram com destino a avenida do Contorno e logo adiante um carro parou perto dos dois e alguém correu e apanhou socorro Japi.
- Deixe o meu amigo seu burguês miserável.
Não adiantou o pobre menino de rua correr em busca de salvar o seu amigo, pois como a sua mãe. O seu amigo se foi.
- Vida desgraçada, isso é vida, um dia a minha mãe, depois o meu amigo cachorro, o que vou fazer da minha vida.
De modo que o pobre Patrão se assentou no meio fio, e ficou se lastimando da sorte.
- Patrão, quem vai me chamar de Patrão, quem, só o Japi que sabe, pois foi ele que me deu esse nome.
- Meu amigo que foi seqüestrado dona cadela.
- Quem é o seu amigo, qual o nome dele?
- Japi, ele disse que o nome dele era Japi.
- Japi, esse Japi que você está falando e o meu filho.
- Seu filho, a senhor é a cadela mãe dele, que um dia fugiu com um cachorro pintado?
- Sim, fui enganada.
- Enganada, como foi enganada?
- O cachorro me levou pra casa do dono dele, era um homem estranho, ele nos deixou com uma mulher de rua, tomando conta de uma casa, ele quase não ia lá, sei que eu passava tanta fome, o certo é que eu aproveitei e fugi.
- A senhora falou em uma mulher de rua?
- Sim, uma mulher de rua, ela chegou enrolada num pano.
- Será que a senhora poderia me levar até esta casa!
- Eu posso até lhe mostrar o lugar, mas não quero nem chegar perto, pois eu saí fugida.
- Não, pode ficar tranqüila, eu não vou te denunciar.
- Então vamos como é mesmo o seu nome?
- Japi me deu o nome de Patrão.
- Então vou te chamar de Patrão também.
- E a senhora, qual o seu nome?
- Japi lhe contou como o pessoal me chamava?
- Não, se me contou me esqueci.
- Meu nome é Leocádia.
- Bonito o seu nome, pena que eu não sei como se chama a minha mãe...
De modo que Patrão e Leocádia saírem com destino a casa onde estava o cachorro pintado. Patrão seguia na verdade com esperança que a mulher que a cadela Leocádia falava, fosse a sua mãe...
- Fica logo ali depois da esquina Patrão. Vai lá ver se a tal mulher é a sua mãe.
Assim que Patrão saiu, sentia em seu coração que algo de muito bom ia acontecer, chegando ao portão ele tocou campainha e escutou logo em seguida o latido de um cãozinho...
- Eu conheço esse latido - relatou Patrão gritando:
- Pi, é você que está aí?
- Patrão, você me encontrou!
De sorte que alguém abriu o portão e Patrão pode abraçar o seu amigo dizendo:
- Meu amigo, pensei que nunca mais fosse te encontrar!
- Eu também Patrão, meu patrãozinho!
E depois do caloroso cumprimento, Patrão olhou pra pessoa que abriu o portão e percebeu que era a sua mãe. Contudo ela não tinha o privilégio de ouvir o cachorrinho Japi, mas mesmo assim ele disse:
- Meu filho, meu Ezequiel, o quanto me arrependo por ter te deixado, me perdoe!
Patrão perdoando a mãe e ao mesmo tempo dizendo:
- Tem alguém te esperando na esquina Pi, diga a ela que o meu nome é Ezequiel.
E Japi foi ao encontro de sua mãe, minutos depois os quatro seguiam pelas ruas...
FIM